4 de nov. de 2004

O último soneto

(esse conto foi a minha primeira participação em uma oficina literária via web. Não agradou muita gente, só teve dois votos. Mas eu gostei dele...Por isso, ele veio pra cá...)

Escreveria um soneto. Não apenas mais um, dos muitos. Mas "o" soneto. E então ela entenderia. Sim, naquela derradeira demonstração de sua pena, finalmente revelaria seu coração. Olhou a garrafa de vinho, largada pela metade, em cima da mesa. Depois de terminar o soneto, usaria aquele mesmo líquido, escuro e cor de sangue, e acabaria com tudo. Era só misturar algumas gotas de um veneno, de preferência o mais raro e exótico possível. E teria um fim digno do seu último soneto.
Porque este seria magistral. Sua obra-prima, que o tornaria finalmente reconhecido. E que faria com que ela o amasse. Há quanto tempo a observava em silêncio, enquanto passava pela rua, sempre acompanhada por sua dama de companhia. Cabelos de ébano, pele de alabastro, olhos como o mar velados pelas cortinas de veludo que eram seus longos cílios.
Sequer sabia seu nome. Não tinha idéia de onde morava, ou o que fazia. Ela sequer sonhava que ele, pobre infeliz, existisse. Mas isso não era necessário. Ela era a sua musa, o seu amor. Seria de sua imagem, perfeita, limpa, pura, sem sequer a macula do conhecimento invasivo, que ele tiraria a inspiração para o soneto perfeito. Que seria infinitamente superior àqueles versinhos medíocres que publicava em revistas literárias, e que lhe davam o dinheiro, aquele sujo capital necessário para viver.
Levantou-se, e percorreu o quarto imundo até a janela. Na noite fria, o luar transparecia sereno, lembrando a brancura da pele dela. Sim, escreveria um soneto. O mais belo de todos. E morreria, por suas próprias mãos. Assim se vingaria de todos os que o humilharam, e também dela, que passava por sua vida, como se tivesse esse direito.
Entrou em um delírio febril. Imaginou-a de luto, chorando desconsolada, sobre seu túmulo. Em suas mãos, uma cópia do soneto, suja e amassada, manchada de lágrimas. Viu-a definhando de tristeza pelo amor que tivera sem saber. E no auge da alucinação, estava lá quando ela, em um suspiro sentido, entregou a alma, para finalmente se entregar ao seu amor.
Riu, até perder o fôlego. Começou a tossir, aquela tosse doentia que o perseguia há anos. Sentou-se na cadeira e entregou-se aos espasmos dos pulmões doentes. O velho gosto de ferro subiu a sua boca, deixando um travo amargo. Com dificuldade, levantou-se e buscou um lenço para limpar os lábios. Quando o tirou da boca, estava manchado de sangue. Outro acesso de tosse o deixou ofegante. A dor tomou seu corpo.
Abriu a pequena caixa de remédios. Pegou a dose de láudano que tiraria a dor. Mas um terceiro e mais brutal acesso de tosse fez o medicamento cair no chão. Ajoelhou-se, ainda tossindo. A vista ficou turva, sentia frio. O desespero tomou conta de si.
Não podia morrer agora, sem escrever seu último soneto.
Enquanto visualizava a sua musa, ele veio a sua mente. Completo. E ele viu que era realmente genial. Mas já era tarde para o derradeiro soneto.

17 de out. de 2004

All the world is a masquerade, made up for fools and philosophers

No baile dos loucos e filosofos, a placa dizia : Bem vindos ao mundo.
Todos os convidados usavam mascaras e as trocavam, conforme suas necessidades vãs de demonstrar falsas emoções ou pensamentos pretensiosos. Até que um convidado - até agora não se sabe se louco ou filosofo - começou a se interrogar.
Pois convivia com aquelas pessoas mascaradas, e jamais vira seus rostos. Não sabia seus verdadeiros sonhos, suas verdadeiras motivações. Olhou-se no espelho e viu que ele também possuia uma mascára. De pretensa sabedoria, que deveria instigar respeito e admiração naqueles ao seu redor, impressionados com o conhecimento que ele aparentava ter. Mas não tinha. Não lera metade do que parecia, não escutara metade do que deveria, não escrevera metade do que arrotava.
Mascara. Uma simples mascara, que encobria a verdade. E todos no salão as usavam, como se fossem seus verdadeiros rostos. Ele mesmo não se lembrava da sua fisionomia, quando não estava encoberta por aquele pedaço de ilusão.
Cravou suas unhas no rosto falso e o jogou longe. Olhou-se novamente no espelho e com um grito doloroso, correu. Em disparada, enlouquecido - agora já sabemos, era um louco - arremessou-se em direção a uma janela. O baile parou por instantes, até ouvir o baque surdo do corpo batendo em algum lugar desconhecido. Um mascarado, o rosto uma expressão da mais verdadeira respeitabilidade, sacudiu a cabeça, dizendo:"lamentável". E a música recomeçou.
No espelho, ficara gravado o motivo do desespero suicida. Pois por debaixo da mascara, o infeliz descobriu que não havia nada.
As vezes, a ilusão é mais confortável que a verdade.

5 de out. de 2004


Ana Rodrigues Posted by Hello

Quem inventou o amor?

O anúncio foi veiculado em todas as grandes redes de notícias. “Quem inventou o amor? Recompensa-se quem o achar!” Muitos pensaram que se tratasse apenas de um golpe publicitário, divulgando um novo produto erótico, ou o lançamento de um disco de canções melosas. A grande maioria não levou a sério.
Os outdoors já estavam envelhecidos, o jingle da campanha há muito ficara na memória dos mais velhos, quando aconteceu um fato surpreendente. Uma jovem alegava conhecer aquele que inventara o amor.
Foi imediatamente entrevistada por uma grande rede de televisão.
- É verdade que você alega conhecer o inventor do Amor?
- Sim, eu mesma. E por favor, é amor, sem maiúscula.
- Por que?
- Porque ele me disse que era assim. Com maiúscula, Amor fica parecendo uma coisa transcendental, fora da nossa realidade. E ele me disse que é a coisa mais comum da vida de todos nós.
- Conte-nos como foi.
- Eu estava em casa, sozinha, vendo televisão. Bateram na porta. Quando eu abri, ele estava lá.
- Ele quem?
- O amor. Você nunca o viu?
- Como assim? Como ele era?
- Ué, como qualquer amor. Ele era simples e complicado, egoísta e generoso, belo e feio, delicioso e repugnante...todo o amor não é assim?
- Assim como?
- Paradoxal, né? Aquele poeta português já dizia que é o vencedor servir ao vencido, lembra? Pois então. Ele é a derrota da vitória e a vitória da derrota.
- E o que ele queria com você?
- O de sempre, né? Queria se instalar, tornar minha vida uma bagunça...Eu recusei, disse que “não, muito obrigada, mas estou feliz assim”. Mas sabe que o bandido nem ligou? Ele disse que no fundo eu queria. E ele estava certo...
- E ele contou quem inventou o amor? - Quando eu perguntei, ele simplesmente sorriu, se levantou e me deu um beijo no rosto. Me disse que o inventor do amor estava mais próximo do que eu poderia imaginar. Sabe, até hoje não sei o que ele quis dizer com isso...

24 de ago. de 2004

A terra das ilusões perdidas

Opa, boa tarde. Desculpe incomodar, mas pode me emprestar um cigarro?

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É, eu sei que faz mal. Na verdade, eu não fumo.

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Não posso. Rinite alérgica. Sabe, os frutos da evolução humana. Doenças respiratórias crônicas na maioria da população urbana.

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Eu estou um pouco nervosa. É a minha primeira vez aqui, sabe?

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É, e olha que pela minha idade, eu já deveria ter vindo aqui algumas vezes. A "terra das ilusões perdidas"...meio tétrico, né? Parece frontal de hospicio ou coisa do tipo...

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Não, nem é uma em particular. Vim procurar por todas.

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Sim...Sabe, um dia eu acordei e pensei: onde será que foram parar as ilusões da humanidade? Aí, peguei um ônibus e saltei aqui. O lugar nem é tão ruim quanto pensei, aliás...

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Mais iluminado, com árvores. Sei lá, meio que esperava um cenário de pesadelo...

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Ninguém quis vir junto, não. Acharam besteira esse negócio. Viviam bem do jeito que estavam vivendo, para que mudar?

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Como assim? Porque eu não fiquei lá também?

...

Ah, porque eu não estava satisfeita...Aqui é sempre frio desse jeito?

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Hum, compreendo. Na verdade, sempre achei que faltava algo. Primeiro pensei que fosse comigo, mas cheguei a um ponto em que tinha tudo. Era plenamente feliz. Mas ainda me sentia insatisfeita. Por isso, raciocinei que só poderia estar relacionado ao resto do mundo. Daí para notar que as ilusões tinham sumido foi um pulo.

...

Pois então. Isso que é o mais engraçado. Quando cheguei aqui e fui procurar o encarregado, ele disse que as ilusões que se perdem não vem para cá. Ficam onde estavam mesmo, mas adormecidas, quase em coma, esperando uma chance de reviver. Então, vou voltar de mãos vazias.

...

Mas valeu o passeio, né? Opa, aquele é o meu ônibus. Com licença, foi um prazer.

25 de jun. de 2004

Alma minha gentil que não partistes...

Um dia me perguntaram se eu acreditava em almas gêmeas. Não pude evitar pensar em você, e responder que não tinha tido a escolha de acreditar ou não. Pois desde que você cruzou meu caminho, tive a certeza de que haviamos nos conhecido antes, em algum lugar.

Não que tenha sido “amor a primeira vista”. Não, nada disso. Lembro muito bem. Eu te chamava de “paraíba metido”, você me chamava de “bruxa”. Isso porque a gente mal se falava. Eu passava por você resmungando, ao que me respondia, me chamando de bruxa na cara-de-pau.

Não lembro porque começamos a nos falar. Busquei em todas as gavetinhas das minhas recordações. Mas deve ter sido pela pura e simples vontade. E também não sei quando foi que me apaixonei. Me dei conta quando comecei a odiar os dias em que eu sabia que não ia ver você, e a contar as horas.

Mas me lembro do dia em que soube que você, a sua maneira, retribuia. Como ia esquecer... foi a primeira vez que meu coração se quebrou. E talvez esteja quebrado até hoje. Pois foi quando nos separamos. A culpa foi minha, foi sua. Foi do Destino? Sei que a tristeza nos seus olhos refletia a minha própria. E aí eu soube. Tão tarde. Não que fosse adiantar saber antes.

Chorei. Noites inteiras. Ninguém percebeu. Pois ninguém podia perceber, ninguém iria entender...ninguém iria me desculpar, ou então, pior, ia julgar criancice. Coisas de adolescente e que tais.

E assim foi. Tentei esquecer você. E sempre que estou quase conseguindo, vem o mundo e lembra. O seu cheiro, que surge do nada, no meio da noite, saído das minhas recordações só para me assombrar. Alguém com a voz parecida, com o seu jeito...

E vi você doente. Segurei a sua mão, e olhei nos seus olhos, e senti que era a última vez. Quando me disseram que você tinha morrido, foi como se eu tivesse morrido junto. Não me disseram onde enterraram o seu corpo, não me permitiram me despedir. Mas não importa. Fechei meu coração em luto. Mesmo que os outros não percebessem, mesmo que eu estivesse rindo e namorando...meu interior sangrava.

Mas com o tempo, me acostumei a viver sem um pedaço de mim. A saber que seria incompleta para sempre. Mas mesmo assim, segui minha vida. Tive um filho, fiz amigos, me formei no que sempre quis. E você que nunca acreditou que eu realmente quisesse ser professora...

E você está vivo. Mentiram para mim. Você esta vivo, e bem. Não sei se solteiro. Não sei se sentiu minha falta. Encontraram você na rua. Só me disseram isso. Não falaram se você perguntou por mim, não falaram sequer aonde...Só isso: “encontrei Fulano na rua”.

Mas mesmo assim, fiquei tão feliz. Pareceu que o mundo abriu-se de repente. Que tudo era novo. Que eu voltara a ter quinze anos...

Não que eu ache que vamos nos encontrar de novo um dia e sermos felizes para sempre. Não. Sempre soube que não era para ser. Mas alma gêmea quer dizer outra coisa. Afinal, por mais diferentes que sejamos, por tudo o que nos separa...mesmo assim. Não tem jeito. Estou fadada a amar você, nessa e em todas as vidas.

31 de mai. de 2004

A natureza de Deus. Ou o deus da Natureza?

Hoje, acho que percebi porque deixei de lado o cristianismo. Porque, apesar de me manter essencialmente monoteísta, não consigo visualizar Deus da mesma forma que a maioria das religiões reveladas.

Deus, para mim, manifesta-se da forma mais clara e absurdamente absoluta na Natureza (e já assim o via Fernando Pessoa/Alberto Caeiro). Então, não há nada mais lógico do que celebrar a nossa união com o Divino, com o Universal, com a Essência de Tudo senão seguindo o ritmo dessa Natureza, comemorando as mudanças que ela torna visiveis.

E o que nós fazemos? Atrelamos nossa espiritualidade, nossa religiosidade ao ciclo de vida de homens. Ontem - ou hoje, nem sei, por exemplo, a Igreja Católica comemorou a Visita de Maria, mãe de Jesus, a sua prima Isabel. O que isso, um fato prosaico acontecido há mais de dois mil anos, tem a ver comigo?

Não é muito mais interessante comemorar as mudanças de estação? Que aconteciam há dois mil, e ainda acontecem. E vão estar acontecendo em dois mil anos, se o mundo não acabar antes...

Abraços!