8 de out. de 2007

Vida de estagiária

(Conto da Intempol, publicado no antigo site do projeto. Foi traduzido pro castelhano e publicado na revista Axxon, sendo o primeiro conto intempoliano a aparecer em outra língua.)
Com um suspiro cansado - e aliviado - arrancou os sapatos. Sabia que era teimosia ir de salto fino, mas as pessoas já a olhavam por cima mesmo com os dez centímetros a mais. Imagina de sandalinha rasteira... Os pés na água quente com sal grosso, a tv ligada em algum programa genérico só para disfarçar a solidão.
Pendurou-se no telefone.
-Oi, querida! Como estão as coisas? Ah, por aqui tudo na mesma. Sim, ainda estou naquele maldito estágio que você me arrumou na Empresa. Isso. Não tenho te visto por lá... Entendo. Como? Se eu estou gostando de lá? Como posso gostar? Você já foi estagiária na Intempol? Claro que não, começou direto como secretária, né?
Fez uma pequena pausa, mexendo os pés na água, agora já morna.
- Para você ter uma idéia, vou contar como foi meu dia. Começou normal, comigo correndo que nem uma louca desesperada. Eu sei, eu sei... Mas não adianta... Estou há dois meses na Empresa e não estou acostumada a chegar na hora, mesmo atrasada. Enfim...Claro que nem bem cheguei, já tinha agente gritando comigo. "Cadê o café, Ana?", "Trouxe o relatório Z-4567?", "Ana, vai ao crono-arquivo e pega a pasta MMM 453?", "Liga pro Comissário urgente!". Cara, assim, tudo bem que eles lidam com o tempo e tal. Eu sou uma só! E esses relatórios são de amargar! Você acha o que? A estagiária fica com a rebarba! As missões interessantes, misteriosas, que envolvem artefatos poderosos, dessas que são a alma da Empresa, eu não sinto nem o CHEIRO! Depois de fazer café - três garrafas térmicas, porque um gosta forte, o outro fraco e tem sempre alguém no meio termo - comecei a rever as fitas de uma missão para começar lá o tal relatório. Você não vai acreditar, a Empresa mandou um agente à Pré História porque uns idiotas fizeram um safári... e pisaram em uma borboleta! Acredita nisso? Eles mataram um tiranossauro rex, e o agente teve que salvar a BORBOLETA! Sentiu o nível? Tem coisas piores... Esse foi o do dia.
Tirou o pé esquerdo da água. Continuou a falar no telefone, apoiando o bocal no ombro, enquanto massageava os dedos doloridos.
- O que? O ruivo bonitão? Claaaaaaaro que ele falou comigo. Duas frases. "O relatório Z 4567 está incompleto" e "Eu prefiro meu café amargo, por favor". Você acha que um homão daquele, agente nível 4, vai olhar pra mim? Não tenho cacife pra tudo aquilo, é areia demais pra minha caçamba. E nem adianta pensar em fazer duas viagens. Pois então, depois desse dialogo amoroso, eu achei que poderia parar e comer a minha marmita. Estava eu indo calmamente pro meu cubículo, o de número 254, e o que aconteceu? Uma neandertal brotou do nada! Simplesmente surgiu! Eu não consegui desviar a tempo, e lá fomos nós; eu, a macaca e minha marmita, pro chão! Alguém começou a gritar "Vejam se ela está bem". Eu fiquei até comovida, ia me levantar quando percebi que a preocupação deles era com a coisinha, fugida de algum lugar, sei lá. Quer dizer, eu sou atropelada por Conga, a mulher-gorila, e todo mundo quer saber se ELA está bem? Típico, eu diria. Ah, adivinha quem limpou a sujeira? Claro, eu. Perdi minha hora de almoço nisso. E não, quando se é estagiária, tempo não é algo relativo. Eu não tenho acesso a caixas temporais e coisas do tipo.
Trocou o pé pelo direito. Suspirou.
- De tarde, continuei no mesmo ritmo. Revisar um relatório imbecil de outra missão idiota, envolvendo uma superpopulação de coelhos, fazer MAIS café, ser novamente ignorada pelo ruivo bonitão... Ah, desculpe. Ele falou comigo. Reclamou que o café estava amargo demais. Tive que arrumar três salas de reuniões. Esse pessoal faz mais bagunça do que um monte de crianças. Largam arquivos em cima da mesa, cinzeiros transbordando... E claro, apesar de ter me parecido que passei dias lá dentro, foram exatas oito horas. Nem um nano-segundo mais. E aqui estou. Vou descongelar a comida, jantar e colocar leite pro gato. Beijo, até amanhã.
Na sede da Intempol, no cubículo 254, a secretária eletrônica dava um bip, indicando o fim da gravação.

Publicado no Site da Intempol (2005)Traduzido como 'Vida de Pasante' na Axxon (2006)

4 de out. de 2007

Ponteiros


“O ponteiro pequeno marca a hora. O grande, os minutos.”

A mãe repetira incansável por anos a fio, tentando ensinar a criança que todos diziam ser lenta demais para aprender.

E a cada vez que dizia, o estapeava. “Pra aprender mais rápido”.

Ele aprendeu. Apanhou. Sofreu. Foi humilhado.

Mas aprendeu.

Olhou o relógio no pulso da mãe.

Limpou o sangue que secara no mostrador.

O ponteiro pequeno no dois, o grande no doze. Parado, marcando duas da manhã, a hora em que a matara.

Arrancou o relógio, jogou-o no chão.

Descarregou as balas restantes no aparelho. Nunca mais olharia um relógio.