31 de dez. de 2007

Conto estranho de Ano Novo

Todas as coisas ruins deveriam acabar no último minuto do ano, para que o Ano Novo trouxesse novidades boas e felicidade. Era nisso que Ana Clara acreditava. E fora pensando nisso que, correndo o risco de tomar uma surra imensa, pegara uma das armas do padrasto, policial militar.

Respirou fundo, pensando bem nos passos do seu plano para começar bem o ano. Iria finalmente libertar-se dos socos, das cintadas... e das mãos sujas do padrasto. Neusa, a mãe, ignorava tudo isso, trabalhava demais e tinha mais dois filhos para cuidar. A tristeza silenciosa da mais velha significava pouco, quase nada, para ela, que passava os dias fora, cozinhando em um hotel da Zona Sul.

Esse ano, não iam assistir a queima dos fogos na Penha, pois o menorzinho estava com pneumonia. A mãe estava no quarto dos dois meninos, numa cama improvisada no chão, atenta a qualquer febre ou tosse. A ceia de Reveillon estava na mesa: frutas, frango assado, um tender, arroz. Ana Clara deveria esquentar a comida e servir o padrasto. E era o que a menina de quatorze anos pretendia fazer. Quando o velho estivesse na frente da tv, acompanhando a contagem em Copacabana, ela iria até o quarto, pegar o velho 38... Sabia que podia contar com os vizinhos, que estouravam os fogos sem respeitar o começo do ano. Mesmo agora, enquanto ainda passava o Jornal Nacional, o barulho estava quase insuportável.

Depois do velho morto, estendido no chão, Ana Clara ia pegar sua mochila e sumir. Daria um jeito de ir para a casa dos avós em Miracema e desaparecer no interior do estado, trabalhar onde desse, mudar de nome, de vida. Ano Novo, Vida Nova. A mãe e os irmãos ficariam melhor, sem o homem horrível assombrando suas vidas e com a pensão que a viúva ia receber.
Bateram na porta e ela teve um sobressalto. Só faltava ser uma das vizinhas, querendo fazer companhia à dona Neusa ou coisa do tipo. Não era. Uma completa desconhecida estava ali. Cabelo castanho claro, gorda, com mais de vinte com certeza. Usava óculos, um pouco tortos, e estava vestida de preto, apesar de todo o calor que fazia. Entreabriu a porta, certa de que era um engano, sentindo-se segura com a correntinha.

- Pois não?

- Oi, Ana Clara, tudo bem? Será que eu posso falar um instante com você?

- Desculpe, dona, não posso deixar você entrar. Não posso falar com desconhecidos...

- Ah, mas eu te conheço, Ana; e até sei o que você está escondendo debaixo da mochila no quarto.

O choque fez Ana Clara agir de forma automática, abriu a porta e guiou a moça até a sala. A estranha pediu um copo d’água e quando bebeu um gole, começou a falar.

- Nossa, que alívio. Calor absurdo... Bem, prazer em conhecer, Ana, meu nome é Ana Cristina e eu vim parar aqui para impedir você de estragar a sua vida.

Nada que Ana Clara falasse ia ser muito útil, então ela resolveu ficar quieta e escutar.

- Assim, eu estava escrevendo a sua história. Sim, hoje, 31 de dezembro... Parece meio ‘loser’, mas veja bem: estou tomando antibiótico, então nada de bebida. Meus pais, coitados, trabalharam o dia todo e dormem até dar 11:40, mais ou menos. O meu filho está brincando ‘brincadeiras de menino’, o que me exclui... – Ela cerrou os olhos, sinal de descontentamento – Ah, a única pessoa online com quem eu gosto de conversar está trabalhando e vi o tanto de tempo que demorou para aquele homem voltar a desenhar então... Resolvi escrever a sua história, uma história triste, pungente... Podia me dar mais água, por favor?

Aturdida, Ana Clara serviu mais um copo.

- Hum, bem gelada. As delícias do subúrbio... Sabe, eu sempre gostei mais da Zona Norte do Rio, o pessoal da Zona Sul é tão metido. Mas não troco Niterói pelo Rio. Voltando: a sua história era para ter uma fada ou um espírito bom desses qualquer, que ia bater em sua porta e lhe dizer como é bom viver, etc etc etc, você iria se comover, conversar com sua mãe e acreditar que a vida é mágica por causa disso. Mas, caramba! – e bateu com o copo na mesa, deixando Ana Clara preocupada. – Por que as coisas boas em uma história tem que acontecer por intermédio de um ser sobrenatural? Ah não! Aí, resolvi: eu vinha pessoalmente resolver o caso. Aliás, com licença.

Com passos decididos, ela foi até o quarto de Ana Clara, pegou a arma, sem sequer hesitar. Abriu o tambor e tirou as balas.

- Pronto, esse caso está resolvido. Quanto à senhorita, mocinha... Você parou para pensar na sua mãe? Em como ela ia ficar?

- Sim, eu...

- Não, não pensou, oras! È sua mãe e ia morrer de saudades e preocupação!

- Mas ela nem liga pra mim!

- Sem emice, menina! Claro que liga, mas você tem dois irmãos menores que não sabem se expressar direito. Ela espera que você, caso tenha algum problema, fale para que ela te ajude. E você, falou?

- Não...

- Mãe não é adivinha, guria. É duro perceber isso. Vai lá e conversa... ela está acordada por causa do Tonho.

- E meu padrasto?

O sorriso no rosto da mulher estranha gelou o coração de Ana Clara.

- Seu padrasto vai descobrir o porquê da minha fama de malvada. E duvido que moleste mais alguém por muito tempo.
E Ana Clara foi.

No dia seguinte, a mãe pediu divórcio, o que aumentou o escárnio geral, afinal o PM durão amanhecera amarrado em um poste, todo machucado, cheio de equimoses e com uma placa: ‘Na verdade, eu queria era ser transformista mas virei P.M.’

Para todos os leitores do Doces Pensantes, um 2008 sensacional!!!

29 de dez. de 2007

O sino


Parada no meio da praça central da vila em que sempre morei, contemplo o sino de bronze da igreja. Lembro da tarde de verão quando foi trazido para substituir o velho sino, já rachado, com um som tão tétrico que afastava as pessoas da igreja e portanto de Deus.

Meu pai ajudara a colocá-lo ali. Fora homem respeitador dos mandamentos, sério, sempre auxiliando a igreja. Sua morte deixara um buraco muito grande naquele pequeno lugar.

O zumbido das vozes me cerca, mas ignoro. Prefiro ficar perdida nos meus pensamentos, contemplando o sino, sinal daquele passado que está cada vez mais distante, a participar da pequenez da vida cotidiana da aldeia, cheia daquelas pequenas mesquinharias e intrigas. Eram todos iguais, capazes de vir chorando pedir um favor e no outro dia sussurrar mentiras nos ouvidos dos vizinhos, envenenando almas.

Eu nunca fizera isso, até porque as vidas dos moradores pouco me interessavam. Jamais me furtei a ajudar quem precisasse, claro está. Porém, não os procurava para nada, deixava que eles viessem a mim. Minha companhia eram os livros em que meu pai, com muito esforço, me ensinara a ler; os bordados que aprendi com minha mãe, falecida meses antes dele, e a gata, já bem velhinha, herança que viera com a casa que herdei. Vivia minhas horas pelo soar do sino.

O sol esquenta. O meio-dia aproxima-se, hora em que o sino irá badalar com toda a sua força. O ruído do povo ao meu redor cessa para que uma única voz comece a ressoar. Voz conhecida de muitos anos. Por muitas vezes, ouvira-a conversando com meu pai, discutindo os problemas daquela pequena paróquia. Não poderia imaginar que aquela voz tão grave e serena se voltaria com toda a força contra mim.

- Por todos os crimes de feitiçaria relatados pelos habitantes desta aldeia, eu a sentencio à morrer na fogueira quando o sino terminar de bater o meio-dia. Algo a dizer?

Não respondo. Já argumentei, negando as acusações. Cansada da discussão, aleguei que deveria ser julgada por um tribunal. Mas não fui ouvida. Estão convencidos que usei de artes da feitiçaria para matar meus pais, auxiliada por um demônio que habitaria a velha gata...

O sino toca. O som é límpido como da primeira vez em que soou nessa praça. Um toque que me lembra a infância e tempos mais felizes. A multidão aproxima-se, tochas em punho. Sequer tento me soltar da estaca em que estou amarrada há dois dias. No meu íntimo, peço que se realmente existir magia que ela me auxilie e me deixe fugir. Se me for permitido viver, naquele momento eu juro me tornar aquilo de que me acusam: uma feiticeira.

Mas quando escuto o toque final do sino de bronze, sinto as primeiras labaredas encostarem nos meus pés nus.

Conto en español

Numa grande gentileza de Sergio Gaut vel Hartman, 'O homem bomba' aparece na revista online Sinergia:

http://www.nuevasinergia.com.ar/cuentos_30ficcionesbreves.html