13 de abr. de 2008

Os olhos de Joana



A guerra explodia nas terras francesas, divididas entre Henrique, o jovem soberano inglês cujo pai arrancara seu direito sucessório das mãos de um rei fraco e insano, e o filho desse mesmo governante enlouquecido, Carlos de Valois, o Delfim, recém-coroado por aqueles que o apoiavam. Entre os dois, estava Felipe, o maior dos nobres franceses, o primeiro dos pares de França, que entregara sua lealdade ao herdeiro da família Lancaster para aliviar a traição que se abatera sobre sua casa.

Porém, mesmo entre os nobres, a casa da Borgonha não fora a única a aliar-se aos ingleses. Famílias antigas dividiam-se, de acordo com o seu interesse mais imediato, nenhuma delas com a determinação dos borgonheses em retirar os Valois do trono.

Abaixo dos grandes, soldados combatiam. Alguns eram mercenários, outros foram convocados pelo poder dos senhores sobre eles... E poucos, muito poucos, lutavam por acreditarem que era o certo a fazer, como Joana.

O silêncio era o companheiro dela em sua prisão solitária. A ausência dos sons costumeiros das batalhas confirmava o seu presságio, as suas tropas haviam perdido a escaramuça, sem comando depois que caíra prisioneira. Presa por cordas em um poste de madeira, pouco poderia fazer senão aguardar o destino. Sua vida resumia-se a essa espera pelo que aconteceria desde que deixara sua pequena aldeia.

Quando finalmente sons ressurgiram, a porta de sua prisão foi aberta e ouviu passos ecoando no chão de pedra.

- Pois então, feiticeira. Tua loucura acaba aqui.

Amarrada, fez a única coisa que pode. Ergueu os olhos, azuis, e encarou seu inimigo. Nos meses que passara convivendo com os soldados do exército francês, ouvira histórias aterradoras sobre o seu captor. Felipe de Borgonha era retratado como um homem enlouquecido, vivendo apenas para vingar a morte de seu pai, assassinado onze anos atrás, traído em uma trégua pelo então delfim. Unira-se aos ingleses e os exércitos da Borgonha e da Inglaterra devastavam as terras que se mantiveram leais ao homem que traíra o duque borgonhês. Joana estivera sempre do lado do delfim que ajudara a coroar, pois como os seus demais seguidores acreditava que a sucessão não poderia ser decretada pelos homens. Apenas Deus teria o direito de escolher os reis, e o fazia pelas famílias reais. Assim as vozes afirmaram.

Viu, porém, um homem de olhos envelhecidos, pesar no semblante, o luto na face e na roupa. Este era Felipe da Borgonha, traidor do reino, aliado dos ingleses. As vozes em sua mente já tinham lhe dito, por várias e várias maneiras, que ele seria o senhor do seu destino.

- Joana de Donremy, capitão do exército do Delfim Carlos, dirás algo em tua defesa?

Baixou o olhar. Queria ainda ter os cabelos compridos para esconder o rosto, mas os cortara para poder lutar melhor. Sentiu a mão do duque levantando seu queixo.

- És apenas uma menina. Não me obrigues a isso. Bedford quer queimar-te como bruxa. O Bispo de Calais irá assinar a sentença. Declare que foste obrigada pelo Delfim a mentir sobre ser enviada de Deus.

Endireitou o corpo e fixou novamente seus olhos nos do nobre.

- Não posso e não o farei, senhor. Eu fui convocada pelos anjos do Senhor a trazer a paz para o reino da França. Tenho a missão de lutar contra os inimigos do rei.

- E eu sou teu inimigo, Joana? Sou tão francês quanto tu. Servi ao pai do teu senhor, assim como meu pai antes de mim. Agora, sirvo ao herdeiro legítimo e reconhecido, o jovem rei de Inglaterra. Teu Delfim é um usurpador...além de um assassino covarde.

O olhar de Joana tornou-se um pouco mais suave.

- Senhor, o duque João morreu há dez anos. Ainda não perdoaste a França?

Foi a vez dele cerrar os olhos. Ela viu a dor tirar a máscara de serenidade e temperança, trazendo o desespero. João Sem Medo fora morto em Paris, numa emboscada encomendada pelo delfim, deixando o seu único filho homem como herdeiro da maior vastidão de terras comandada por um Par da França. E o coração fechado em luto

- Não perdoei o monstro que chamas de rei.

- Deve a terra pagar pelos crimes daquele que a governa? – em sua mente, as vozes sussurraram o seu fado. – Que seja, senhor. Entrega-me ao falso regente. Siga o teu destino e me deixe seguir o meu. Porém, digo-te...

Chamas subiram aos olhos de Joana, e Felipe recuou instintivamente, desviando o olhar.

- Antes de mais um verão, casarás com a filha de um rei, um rei bastardo mas poderoso, e ela te dará três filhos, um deles será seu sucessor... A paz reinará entre o duque e o delfim, até que seja a hora da Queda da casa mais poderosa da França. Um dos teus, ó Felipe, será Imperador, e dirão que foi tão poderoso que o sol jamais se pôs sobre seu Império. Terá o nome de Carlos, rei e senhor da Europa.

Felipe recuou ainda mais.

- És realmente uma feiticeira, Joana. Enguerrand... – O jovem secretário que permanecera oculto apareceu. – Chame o senhor de Monsaint. A bruxa será entregue ao duque de Bedford, com meus cumprimentos. E jamais diga uma palavra a ninguém sobre o que aconteceu aqui.



No dia em que Joana, dita D’Arc, queimou por ordem do Bispo de Calais, Felipe, O Bom, duque da Borgonha, da Flandres e do Brabante, estava em Dijon com sua esposa Isabel, infanta de Portugal. Olhavam para o pequeno Antoine, uma criança fraca que provavelmente não sobreviveria. Felipe estava tranqüilo, pois lembrava da profecia da feiticeira e sabia que teria um herdeiro.

Dois anos depois, Joana nada mais era do que uma fraca lembrança. A guerra amainara e o antigo Delfim procurava Felipe, interessado em uma trégua. Nas noites frias do inverno em Dijon, o duque embalava seu pequeno filho. Carlos dormia, e seu pai sonhava. Com as glórias da coroa, e com a queda da casa real francesa. Não podia saber que a queda seria de seu filho, e demoraria mais três gerações até que o último cavaleiro borgonhês assumisse a glória imperial, com o nome de Carlos V. Não olhara até o fim nos olhos de Joana.